A história de

Marlon Henrique

Marlon Henrique nasceu em 22/02/1991 na cidade de Campinas. Sua mãe tinha quinze anos de idade, era solteira e estava envolvida com álcool e outras drogas desde os doze anos.

 

Criado pela avó materna, Marlon cresceu em um ambiente disfuncional, marcado por muita violência psicológica e abusos. Seu meio era fragmentado.

 

Sem vínculos afetivos na família e com dificuldade de se relacionar, a falta de conexão entre as partes foi o pano de fundo de seu desenvolvimento desestruturado como ser humano desde a mais tenra infância.

 

Não devemos eleger um culpado para os problemas da vida. A existência de culpados implica em punição ou castigo. Na verdade, somos influenciados por motivos que moldam quem somos: se somos bem-sucedidos, se temos uma personalidade funcional ou se temos uma percepção realista de nossa imagem.

Acreditamos que o que adquirimos em nosso ambiente familiar e educacional está diretamente relacionado à qualidade de nossos relacionamentos interpessoais e, consequentemente, à construção de nosso eu. Nossas primeiras relações são a origem de possíveis disfunções em todas as áreas de nossas vidas ou da dificuldade em nos encaixarmos.

 

Não se trata de encontrar um culpado. Toda criança tem o direito ao amor, à educação e a ser validada como é. Os pais de Marlon tiveram suas infâncias marcadas por ausências e excessos diversos.

 

Quando Marlon nasceu, ele entrou em um sistema familiar oprimido, tóxico, violento e carente de afeto, onde todos precisavam de apoio emocional, começando pelos adultos. Essa necessidade existia desde outras gerações anteriores, tanto maternas quanto paternas.

 

A mãe de Marlon era a filha mais velha de cinco irmãos, e seus pais se separaram devido ao alcoolismo do pai, a situações de abuso, ausência e excessos. Marlon chegou ao mundo em um momento bastante conturbado.

 

Seu pai era usuário de drogas, violento e envolvido em atividades criminosas, que são consequências do vício. Como muitos outros, o menino sofreu perdas: aos cinco anos de idade, perdeu seu pai, com quem não tinha vínculo.

 

Marlon teve um relacionamento mais próximo com sua avó materna, que assumiu a responsabilidade imediatamente. No início, sua mãe conseguia estar presente, mas isso durava pouco tempo devido à sua vida conturbada fora de casa e ao uso compulsivo de substâncias psicoativas.

 

Após a morte de seu pai, a mãe de Marlon procurou tratamento e estava com 22 anos de idade. Três anos depois, quando Marlon tinha nove anos, eles se reuniram novamente e sua mãe pretendia estar presente.

 

Sabemos que o uso de drogas é apenas a “cereja do bolo” para o indivíduo doente, e com sua mãe não foi diferente. O desejo de ser mãe não era suficiente nessa relação, pois já havia culpa e uma dívida impagável o bastante para impedir uma conexão entre eles.

 

Dependemos dos nossos primeiros relacionamentos para desenvolver vínculos e conexões afetivas válidas para a nossa personalidade funcionar. Marlon desenvolvia vínculos familiares superficiais.

 

Aos dezesseis anos, iniciou-se uma busca involuntária, conduzida por sua mãe, por terapias visando prevenir os pequenos sinais indicativos no jovem Marlon.

 

Em 2007, ele sofreu sua primeira overdose seguida de múltiplas agressões físicas causadas por outros, o que quase o levou à morte. Esse episódio não apenas surpreendeu, mas também aterrorizou a todos, especialmente sua mãe, que temia isso há anos. Essa mãe sabia que, se um dia Marlon experimentasse drogas ou enfrentasse esse problema, seria sua culpa sem sombra de dúvidas.

 

Enquanto muitos pais se perguntam quando e onde erraram, a mãe de Marlon sabia que essa sentença chegaria um dia e que teria que pagar um preço alto por isso. O medo da culpa é um dos sentimentos mais derrotistas e aterrorizantes na vida de alguém. Em 2007, começou a luta contra o grande mal, o mal mais temido por qualquer família: o medo de perder um filho para as drogas.

 

A mãe de Marlon era casada e já tinha outra filha. Estava há dez anos sem usar drogas e engajada no propósito de ajudar outras pessoas a viverem uma vida melhor, livre das drogas e de suas consequências. A cada internação que Marlon enfrentava, crescia o impulso para o uso após cada tratamento. O medo de perder e a tentativa inútil de controlar o filho levaram a mãe de Marlon, juntamente com seu padrasto, a buscar ainda mais recursos para que ele entendesse que viver sem drogas era muito melhor.

 

 Porém, como diz a literatura de Narcóticos Anônimos “[…] quando um adicto não quer parar de usar drogas, pode-se rezar por ele, pode-se trancar, pode-se bater, mas ele não irá parar até que queira parar“.

 

Ele precisava do desejo, mas ele não queria parar, e talvez não acreditasse que pudesse. Essa mudança só poderia partir da própria pessoa. Ninguém, além do indivíduo, pode dar esse passo. Marlon passou por um total de nove internações até o ano de 2013, todas completas e com a ajuda de diversos profissionais e amigos influentes na área de tratamento. Poucos conseguiram alcançá-lo. Aqueles que o conseguiram sempre diziam que Marlon era bom, ingênuo, sem malícia ou maldade em si.

 

Marlon tinha um coração de criança. Assim como uma criança, ele não pensava em perspectivas futuras. Tinha alguns poucos devaneios e era extremamente carente. Valorizava muito a beleza física, era vaidoso e querido por muitos. Era engraçado e, às vezes, divertido. Gostava muito de músicas eletrônicas. Não precisava de muito para se animar. A maioria das fotos que Marlon tinha era sempre em alguma instituição por onde passava. Ele fazia planos de mudar, mas quando a oportunidade surgia, ele voltava a se drogar  novamente.

 

No ano de 2013, Marlon teve sua última internação e passou alguns meses em tratamento, mas estava cansado de usar drogas e ser internado ou interditado por sua mãe e padrasto. Surgiu a proposta de recomeçar uma possível relação saudável com sua mãe, que já tinha evidencias que as coisas não estavam indo bem e sentia que poderiam piorar. Conversaram, expressaram seus sentimentos e mágoas passadas, ressentimentos acumulados ao longo dos anos de um amor não vivido. Se perdoaram e fizeram um pacto de dar uma chance para se conectarem. Era o início de uma nova história.

 

Em dezembro de 2013, Marlon retornou da clínica e, em questão de horas, voltou a fazer uso de bebidas e drogas, sem sequer tentar algo novo. Não houve encontro, passeio conjunto, ida ao cinema, nem tempo para qualquer coisa proposta no pacto. Após inúmeros conflitos familiares e situações confusas em que ele se envolvia, finalmente disseram a Marlon: “Se você quer usar drogas, então vá em frente, não podemos mais suportar isso, estamos exaustos.”

 

Marlon não tinha mais controle algum, nem sequer tentava. Ele voltava para casa de forma deplorável e humilhante, desvalorizado por essa doença que mata e desmoraliza, incapaz de se proteger devido ao uso. Decidiu seguir seu próprio caminho e saiu de casa. Sentindo-se vítima por imporem limites a ele, agiu como se não tivesse escolha, entregando-se. Esse é o ponto em que nos sentimos impotentes.

 

Mesmo com a verdade diante de nossos olhos, ainda questionamos: será que não podemos fazer nada? Às vezes, temos medo de nos posicionar diante de nosso ente querido, e o medo de que ele não retorne com vida nos torna permissivos, passivos e desrespeitamos a nós mesmos. Não estabelecemos limites nem disciplina, assim como ele faz, mas, em algum momento, precisamos ter fé, confiança de que, se não respeitarmos o que acreditamos, acabaremos perecendo de qualquer maneira.

 

O medo da culpa, o nosso próprio julgamento, o medo de perder e ter que lidar com isso nos desespera e nos cega. A doença da adicção é a doença da família, a doença da falta de vínculos, é uma doença contagiosa, não no sentido literal. Quem convive com alguém doente pelo uso de substâncias acaba adoecendo também.

 

Queremos garantias de que uma determinada atitude não nos fará perder. Porém, nunca teremos garantias, precisamos arriscar. Ou arriscamos ou nunca tentamos, e assim nunca saberemos os resultados de agir, de ter a coragem de ser vulneráveis.

 

Em 22 de fevereiro de 2014, Marlon completaria 23 anos. No dia 15 de fevereiro, às 4h30 da manhã, Marlon estava alcoolizado e foi atropelado por um motorista também alcoolizado, que, como tantos outros, atropelou e fugiu sem prestar socorro, enquanto outros motoristas, sem saber, fizeram o mesmo.

 

Desprovido de qualquer documento que pudesse identificá-lo, Marlon foi encontrado 15 dias depois, num necrotério, sem condições de ter seu corpo reconhecido, velado e sepultado. Escrever a história de Marlon não é uma tarefa fácil. Vou lamentar essa perda pelo resto da minha vida.

 

Meu nome é Mônica Baptista, tenho 46 anos de idade. Já se passaram mais de 26 anos desde que não faço uso de qualquer substância que possa alterar minha mente ou meu ânimo. Sou filha de um alcoólatra, enfrentei a dependência de drogas e fui mãe de um adicto. Busquei tratamento, me descobri, me reconstruí e enfrentei as consequências da doença. Sou formada em Psicanálise Clínica e Aconselhamento em Dependências. Atualmente, possuo minha própria clínica e consultório, onde acolho pessoas que enfrentam problemas semelhantes aos que vivenciei ou que possuem alguma relação com a adicção e as dependências.

 

Minha maior experiência está gravada em minhas veias, em minha própria carne. Há mais de vinte anos trabalho com adictos e seus familiares. Aprendi lições que o dinheiro não pode comprar e que não se aprendem na universidade. Minha missão é levar adiante o que descobri e continuo descobrindo ao longo de minha jornada.

 

Sou a mãe de Marlon Henrique Santana da Silva, nascido em 22/02/1991 e falecido em 15/02/2014. A vida já me colocou de joelhos, mas me levantei e tenho seguido adiante, um dia de cada vez desde então.

 

Com o objetivo de evitar que outros vivenciem o que eu e meu filho passamos, estamos comprometidos a acolher com empatia, compaixão e humanidade todos os Marlons e Mônicas que ainda enfrentam a adicção e todas as suas complexidades.

 

Agradeço à minha querida mãe, pois sem ela nada disso seria possível. Agradeço por ter me dado a vida e por ter cuidado do meu filho para mim. Serei eternamente grata.

 

Não consigo expressar em palavras a experiência dessa grande perda. Eu e meu querido esposo, meu companheiro de jornada, estamos nessa missão de levar a mensagem de força, fé e esperança àqueles que ainda estão nas garras dessa doença.